novembro 03, 2010

A faca e o mandarim', um marco na literatura brasileira


ROMANCE

Adelto Gonçalves


Decorrido quase um quarto de século de sua estréia no romance, com Liberdade condicional, Sinval Medina, a exemplo de Machado de Assis, é daqueles escritores que, como os bons vinhos, melhoram com o tempo. A comparação com Machado de Assis não é exagerada nem fortuita porque a sombra do bruxo do Cosme Velho paira sobre A faca e o mandarim (São Paulo, Editora Girafa, 2004), seu mais recente livro e, provavelmente, o mais significativo de sua carreira.

Com humor e estilo machadianos, Medina reconstitui neste romance uma parte da história brasileira do início do século XX, até aqui pouco visitada por nossos ficcionistas e mesmo pouco estudada por nossos historiadores – uma época em que senador gaúcho Pinheiro Machado (1851-1915) mandava e desmandava, acumulando tantos poderes que até presidentes da República tiveram de lhe prestar vassalagem.



O livro começa ser escrito a 24 de agosto de 1954, dia em que Getúlio Vargas pôs fim à própria vida e, com golpe de mestre, barrou o avanço dos conservadores que queriam colocá-lo para fora do Palácio do Catete a qualquer custo. Quem acompanha os acontecimentos é um obscuro jornalista, Custódio de Paiva Lima, que, prestes a se aposentar no serviço público, decide aproveitar o tempo de uma licença-prêmio para redigir suas memórias.

Nascido em família pobre no Rio de Janeiro, Paiva Lima, levado para a carreira jornalística por Paulo Barreto, o João do Rio, cronista da sociedade carioca da belle époque, acaba, à força das circunstâncias, por se tornar grande conhecedor da vida do senador Pinheiro Machado, o “mandarim” da República que foi apunhalado à traição por um pobre diabo, provavelmente a mando de poderosos. O crime, no entanto, nunca ficou esclarecido.

Com alusões, referências e mesmo reapropriações do estilo do maior mestre do romance brasileiro – “O micróbio do beletrismo não causou mais que um exantema súbito, uma caxumba que a idade se encarregou de curar” (p.12) –, Paiva Lima cativa o leitor ao se dirigir a ele como a um velho conhecido, tal como o seu inspirador, pedindo-lhe licença, de vez em quando, para encerrar o capítulo, “dado o adiantado da hora” (pp. 190 e 355). Igualmente mostra-se tributário de Camões: “Muito além da Tapobrana e do cabo das Tormentas, contraí uma terçã tardia. Me deixei picar pela mosca azul. Cometi o pecado mortal de escrever um livro” (p.13).

Escrevendo como se fosse um amador disposto a entrar em seara reservada a refinados cultores do romance – “Tivesse eu a competência de um Balzac, de um Stendhal, de um Machado, na certa arrumaria um jeito menos mequetrefe de contar essa história” (p. 14) –, o jornalista em fim de carreira, de maneira despretensiosa, agarra o leitor desde o início para levá-lo a conhecer os meandros reais e imaginários da República Velha (1889-1930), cujos costumes e piores tradições perduram até hoje na cena política brasileira.

Jornalista de O Paiz, influente periódico da Capital da República, Paiva Lima não tem nenhum comprometimento com a isenção dos fatos ou com a verdade. É comprometido mesmo com o senador Pinheiro Machado, de quem receberia uma sinecura no funcionalismo público que lhe garantiria a sobrevivência – e até um respeitável padrão de vida –, assim como seria visto como um sabujo do getulismo até o fim de seus dias.

Por isso, como conta, naquele dia de 1915, quando chegou ao Hotel dos Estrangeiros poucos minutos depois do assassinato de seu “padrinho”, além de revoltado e em estado de choque, carregava a certeza de que seria possível desvendar que forças ocultas estariam por trás do assassino, um ex-investigador da polícia civil de São Paulo, tipo obscuro, que alegava ser o único responsável pelo crime, cometido, segundo ele, “com o objetivo de libertar o povo brasileiro do infame caudilho que o tiranizava” (p.57).

Como todo pró-homem de seu tempo, Pinheiro Machado carregava atrás de si uma cáfila de apaniguados, inclusive o jornalista que nos conta a história. Um desses comensais, porém, é especialmente protegido, o doutor Aliomar Rocha Rabelo, enfant gâté do senador, médico legista da polícia civil, conhecido frenólogo, que, para vingar a morte do “padrinho”, à sombra, promove uma série de acontecimentos que deixariam a população carioca em polvorosa por anos a fio. Segredo que o jornalista haveria de descobrir só mais de vinte anos depois, quando, destacado para cobrir a Copa do Mundo de Futebol de 1938 na França, reencontraria o velho amigo bem instalado em Paris.

Embora tenha foro de romance policial, A faca e o mandarim prescinde da presença de um detetive de raciocínio dedutivo, substituído aqui por um jornalista aparentemente pouco brilhante, que chega ao fim da carreira como redator de obituários. A história, porém, vale mais pelas suas observações a propósito de pessoas normais e anormais e pelo estudo das perturbações mentais de um criminoso, levando o leitor a concluir que há sempre um assassino dentro de cada ser humano, pois a ação delituosa pode vir de onde menos se espera.

Na voz do jornalista, Sinval Medina constrói seu romance histórico, mesclando, como raros autores, ficção e realidade. Preocupado com o vocabulário que se utilizava no Rio de Janeiro da primeira metade do século XX, o autor enfrenta, vitorioso, os problemas de linguagem comuns num romance histórico.

O tratamento literário dado a um enredo ao mesmo tempo divertido e trágico confirma que o gaúcho Sinval Medina, aos 61 anos, vem cumprindo uma carreira literária ímpar em que se destacam também Tratado da altura das estrelas, de 1999, e O herdeiro das sombras, de 2001. O leitor acompanha atento ao desenrolar da trama, à qual o autor acrescenta algumas observações filosóficas, que enriquecem o texto e aumentam o prazer da leitura. Desde 1997, Medina dedica-se em tempo integral à literatura, o que significa que, com certeza, ainda nos dará outros grandes romances como A faca e o mandarim. 



Adelto Gonçalves, doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). 

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