agosto 26, 2010


 Maria Estela Guedes
A poesia que brota de Bissau




Bufo regularis
Não queres partir sem antes voltar
A Mansoa, à piscina de madeira de Nhacra,
Na beira de um mangueiral fechado em
Seu secreto devaneio. O capim calmo
E as rãs como crianças
A chapinharem na água.
Não queres partir sem voltar a ouvir
As galinhas-do-mato em suas queixas:
Tou fraca! Tou fraca! Tou fraca!
Queres voltar a Bafatá na velha ambulância
Vermelha, pesada de negros e bagagens,
De porcos e galinhas
E que era preciso empurrar para vencer
Os canais abertos na estrada pelas chuvas.
Os relatos de futebol com a sua veemencia gritante
Enchiam de acontecimento as plácidas
Tardes de domingo.
Não queres partir sem antes
Voltares a ver os sapos grossos como cocos
Que saíam da horta, à noite,
Para virem até dentro de casa
Lamber os mosquitos atraídos pela luz
Do Petromax e as larvas ainda com asas da bagabaga.
Os sapos são decerto os Bufo regularis
Bô ca misti partir, bô tem manga de sôdade…
 Maria Estela Guedes

Britiande/Lamego, 1947. Viveu  em Bissau de 1956 a 1966. Editora da publicação electrónica TriploV (www.triplov.com). Livros publicados, de e sobre  poesia:  “Herberto Helder, Poeta Obscuro” (Moraes Editores, Lisboa, 1979); “SO2” (Guimarães Editores, Lisboa, 1980); “Eco, Pedras Rolantes” (Ler Editora, Lisboa, 1983); “Mário de Sá Carneiro” (Editorial Presença, Lisboa, 1985); “À Sombra de Orpheu” (Guimarães Editores e Associação Portuguesa de Escritores, Lisboa, 1990); “A_maar_gato” (Lisboa, Editorial Minerva, 2005); “À la Carbonara”, em co-autoria com J.-C. Cabanel & Silvio Luis Benítez Lopez (Lisboa, Apenas Livros Lda, 2007); “Tríptico a solo” (São Paulo, Editora Escrituras, 2007); “A poesia na óptica da Óptica” (Lisboa, Apenas Livros Ltda, 2008).

Maria Estela Guedes ou a escrita no papel do chão

O que se diz de Chão de Papel:


 Nicolau Saião


   Por vezes, atrás de nós, há um ruído insistente. Vamos por uma rua, estamos sentados na gare dum aeroporto, num café pouco frequentado, acabámos de nos levantar do banco de um jardim ou frente ao mar numa cidade estrangeira onde nos encontramos absolutamente sós ou, então, numa taberna de uma pequena estância balnear que visitamos pela primeira vez.


   O ruído pode ser o de uma ferramenta manejada por um operário desconhecido, um animal enclausurado que forceja por se escapulir, uma qualquer máquina de que jamais veremos os contornos, o assobio intermitente de uma sirene de oficina ou de embarcação. Mais raramente, gritos abafados, que não identificámos ou que não sabemos de onde vêm. Talvez de simples transeuntes, talvez de soldados em marcha ou de crianças entregues aos seus jogos infantis.

  Quem se esqueceu, quem pode olvidar a sensação de surpresa, de estranheza, de arrepio que esse barulho, quebrando a naturalidade do fragmento de quotidiano, despertou em nós?

   Frequentemente, os poemas de certos autores são também assim: arrastam, suspendem, distorcem por um breve instante o mundo em que nos fixáramos, no qual excursionávamos ou que nos preparávamos para ocupar. São inquietantes, nostálgicos, palpitantes e, se nos sugestionam como a súbita aparição de uma paisagem desconhecida ou abandonada há muito tempo mas reconhecível, também criam em nós uma espécie de encantamento provocado por misteriosos filtros ou poções de secreta proveniência. Que poderá ter tido origem no universo da recordação.

  E afinal, para maior maravilha, tudo se passa no quotidiano que temos ou que tivémos. Tudo se revela, existe, projecta e vive a partir desse dia-a-dia em que as pessoas viajam, deambulam e se relacionam como se o fizessem num universo penoso ou fecundado pela alegria. Um universo concreto onde se viveu, onde existem sombras e luz.

   Depois, tudo começa a existir nos livros e em nós enquanto leitores: de repente os poemas passam a pertencer-nos, tal como as visões das maiores aventuras que eles transportam ou assinalam. E, mais e melhor, afinal somos donos dos livros, essas máquinas de imaginar que a cada instante traçam no espaço rotas intemporais. Como num sonho (melhor, na realidade) somos de novo habitantes dum país de outrora, porque também as palavras que formam os versos, matéria aparentemente volátil, passaram a ser tão nossas como um coração, um braço, as artérias ou a mão alucinada com que erguemos os sinais tempestuosos que existem à nossa volta.

  Ou na memória.

       Olhei para baixo. Até onde o olhar alcançava, voando a 15 quilómetros de altura e em velocidade de cruzeiro, só se avistava areia – a areia milenar e surpreendente do Sahara. Deverei dizer surpreendente? Mais deveria dizer excitante, familiar dos sonhos de adolescente, de encantado leitor de Salgari e de Kingston que eu fora e nunca deixarei de ser. E pouco a pouco o avião foi descendo até estabilizar nos 2800 metros. Deferencia habitual, informou-nos uma hospedeira de bordo, do comandante quando algo de singular acontecia a quem cruzava num jacto aquela parte do mundo.

   Que olhássemos para uma fita escura que se via lá ao fundo, à direita... E enquanto o avião descia, a pouco e pouco desenhou-se uma fila que a  breve trecho aumentou e se verificou serem camelos e viandantes duma caravana sulcando o erg em demanda dum oásis, duma cidadela lá para os lados do Oceano.

   Horas antes fora a partida de Bissau, a saída pela costa africana do hoje Sara Ocidental, a imensidão do mar. Cerca de três horas depois passava-se sobre as ribas algarvias. E uma hora depois estava de novo em Lisboa, de cujo aeroporto saíra cerca de um ano antes para me achar - tonto de sono e de alguma angustiada surpresa quando saí para a manhã da bolanha que rodeava Bissalanca - na cidade de Bissau, na “província ultramarina da Guiné” como rezava o livrinho “Missão no Ultramar” que logo nos era entregue, de capa verde ilustrada com uma foto da cidade com, em primeiro plano, os armazéns da alfândega do porto do Pidjguiti que depois tão bem iria conhecer.

Por vinte e sete meses ao todo.


      Como conheceria muitos outros sítios constantes no atlas dos poemas deste Chão de Papel.

  O título, como os conhecedores do lugar-onde terão percebido, aponta para a pátria-chica do grupo étnico desta região guineense: a tribo dos papéis, cerca de 40 mil naquela altura. É um trocadilho, um simbolismo feliz, pois foi nesta pauta que a A. traçou o seu mapa de viagens da incursão onde também me revejo: a Praça onde eu ia comprar a fruta que a princípio me admirava por ser tão diferente (e me permitiu não fazer uma avitaminose...), a estrada para Catió onde por vezes éramos abordados mediante uma frase em crioulo (“Qué que bô miste? Bô miste catota ó bô miste bunda? Fala qué que bô miste!”) e que não traduzirei por desnecessidade e discreção alentejana.

   O som plangente dos choros, o ruído insistente dos tambores na distancia e, a certas horas da tarde ou da noite, o ba-oum das rocketadas e da artilharia a quilómetros para lá da bolanha, que a certa altura da comissão nem nos inquietavam já. Os passeios à civil pelo fim-de-semana e pelas noites em que não se estava de serviço, a ida a ver as montras, namorando as camisas elegantes para depois se poderem comprar no fim do mês, a cerveja de garrafa de vidro grosso acompanhando os pratinhos de camarão e de mancarra, no Café em frente da loja da CUF, sob as grandes árvores, as andanças pelo bairro das vivendas catrapiscando as aliás inacessíveis bajudas cujo balançar hierático nos sugestionavam, a nós monges guerreiros. E as idas ao mato, para cumprir as obrigações militares...


  Os filmes no Cine-Teatro, as taças de sorvete no terraço da Pastelaria da avenida cujo nome esqueci e que era no enfiamento do Palácio do governador até aos edifícios da alfândega, os jagudís que à hora do almoço baixavam dos seus céus de sobressalto e, às dezenas, esperavam civilizadamente, para depois se banquetearem, a ração militar de restos despejados nos bidons de folha onde, nas proximidades, se podiam ver também, recolectando sua mantença, garotos e garotas dos cinco, seis, sete, oito anos e mesmo mais, que a fome era muita e a generosidade dos cozinheiros lhes dava a primeira pratada depois de aconchegados os estômagos...


   O cabo especialista barbeiro, dublé de poeta popular na boa tradição metropolitana dos vates, que me rapava artisticamente a trunfa enquanto me dizia quadras e endechas confeccionadas à maneira escalabitana, o negro anão que era seu adjunto civil por acção psicológica oficial, a lavadeira Domingas de sua graça que me lavava e passava a roupa e ma ia entregar sempre com um miúdo na alcofa das costas, o sargento parecido com um chefe-de-repartição de Finanças a quem eu emprestava livros do Simenon e do Camus comprados na Livraria-Papelaria da rua de cima, paralela à marginal e perto do quartel-fortaleza da Polícia militar, o da Amura de seu nome.


  O vasto terreiro castanho-avermelhado da parada rodeada de casernas antes do arame-farpado da ”zona de morte”, nesse quartel-general tão bem evocado por José Martins Garcia no seu magnífico “Tempo de Massacre” (JMC que eu lá conheci apenas como o “alferes maluco”, meu companheiro de jogos de xadrez intemeratos, democráticos e progressistas – costumava emprestar-me o “República” que lhe chegava da metrópole – e depois, já na peluda um par de anos decorridos, em Lisboa na sala do restaurante “Os anarquistas” da Rua da Misericórdia, aonde eu iria ser o convidado (por carta Lisboa-Portalegre) para almoçar com Álvaro Guerra e um amigo - e conferi surpreendidíssimo (e ele também) que era afinal o autor dos textos inefáveis, pelo humor corrosivo, que faziam as delícias de boa parte do Portugal oposicionista que lia o Suplemento Literário onde igualmente me desemburrava literariamente!


 Que a Guiné tinha destas coisas, frequentemente nos perdíamos-encontrávamos nos meandros rumorosos desse lugar de contendas.

    Também eu não sei, como a A. não sabe, se a fonte de Vaz Teixeira existe ainda. Provavelmente não, como tantas outras coisas que os anos de independencia fizeram desaparecer. “A África começa mal”, constatava o famosíssimo título do livro de René Dumont. E ao darmo-nos conta  de tal facto, que é/foi indubitavelmente real, não podemos deixar de sentir – nós que a amámos por razões carnais, diria, de corpo que se fez espírito durante e depois de uma permanencia que nos pareceu alongada pelas vivencias ali tidas – uma funda perturbação.

    Não me referirei mais a estes sucessos de internacional política quotidiana, que aliás corroboram tão simplesmente uma evidencia. “Hoje (as sanguessugas) são mais pequenas/E até a alma te sorvem”, como escreve MEG num registo mais simbólico e noutra direcção metafísica. Que estes poemas, sóbrios e belos /um belo diário de bordo da memória/ fluido como um relato amoroso, como disse de maneira absolutamente adequada Floriano Martins, se tocam intensamente o que fica para além dos olhos - de uma forma discreta, desenfastiada, aparentemente casual – é no espaço desse olhar que cobram a sua ressonancia mais poderosa.  A isto chamaria eu pudor. Ante o sagrado das memórias, a saudade que em certas alturas quase nos sufoca tem de velar-se sob uma cortina de coisas simples e chãs, para que não as fira uma excessiva exposição de sentimentos. O grande hausto de melancolia, de reencontro, de profunda ternura por um tempo e uma terra, está nesse intervalo apenas sugerido, nesse discreto rumor de dentro que as palavras deixam adivinhar a quem lê com a cumplicidade necessária.

   Os poemas efectuam um périplo singular, apontam para os lugares e os nomes familiares e mesmo domésticos, reconhecíveis em todas as horas e acontecimentos. Marcam uma rota, definem uma emoção e uma realidade. São como marcas num mapa cuja geografia se prolonga em todas as direcções, neste chão de papel que é livro e sugestão de um país que se fará permanecer mesmo que dele tudo se vá modificando.

   Como alguém disse um dia, é num livro que tudo afinal acaba. Para que a terra não esqueça.

  Nestes poemas de MEG sente-se pairar a sombra de Rembrandt e da sua mensagem lucidamente anti-lírica - se entendermos como lirismo essa escrita impressionista (um pouco desfasada da realidade mais legítima e soberana) que por ai vai dando cobertura a um romantismo de pacotilha, ultra sentimental e, por isso mesmo, refalso e, no fundo, claramente pedante.


  MEG revisita Rembrandt, o pintor que nos deu um realismo avant la lettre excursionando pela sua própria rota interior, essa que contém os sinais de um país transterreno.


  O Rembrandt das noites semiveladas e das carnes escorchadas, mas também o criador fascinado e fascinante dos interiores repletos de real encanto, está aqui, como se nos antolha que também ali esteja o perfil sóbrio de Milton com todos os seus horizontes perdidos e reencontrados.


  Ali, aqui, nesta terra martirizada da Guiné, mas também na terra encantada de uma menina de 12 anos que através da sua sensibilidade e da sua inteligencia soube forjar as tintas com que fotografaria a seu tempo uma grande e bela comoção posta em poemas que nos levam de viagem pelo seu paraíso disperso pelos anos que se evolaram.

   Está ali a escrita, a paixão e o conhecimento da escrita, que é signo maior lavrado nas paredes de um amor pelos ritmos da memória, deliberadamente posto em equação. E está aqui também a interrogação do ser humano, da mulher que (se) recorda, que escreve, que do baú deslumbrante e deslumbrado do seu espírito e da sua nostalgia soube retirar os mais belos sinais de uma infância e adolescência para depois e para todo o sempre.

  Idade de mulher... Por isso também Prometeu aqui comparece - esse Prometeu que os grandes pintores, os grandes poetas, podem encenar nos seus quadros/poemas diurnos ou sob a lua dos tempos que vão transcorrendo - pois que o fogo do entendimento ela o acalenta a cada pincelada (verso), a cada retrocesso e reincursão, a cada nova inflexão, a cada lugar revisitado.

  Neste livro/poema, cujas jornadas incessantemente se questionam tanto quanto se afirmam - pois que é esse o movimento perene da poesia, ir e vir como se fossem as ondas de um mar na noite ou na claridade - a penumbra ilumina-se a dado passo para ganhar um sentido além da devastação e da amargura. Trata-se duma legítima e nostálgica evocação mas igualmente, ou principalmente, duma transfiguração.

  Conhecedora das mansões em que se radica a Arte Real, a autora deixa que a sua poesia se perpasse duma transmutação forjada pela forma e pela qualidade da escrita praticada. Espiritualização da matéria e materialização do espírito, para tudo dizer.

 Rembrandt, Milton, Prometeu: o mistério das coisas e dos seres, a sua representação virtual e a chegada ao conhecimento. Ou pelo menos à busca intemerata do conhecimento (da sabedoria?) e de tudo o que ele nos pode ofertar - como claramente acontece neste Poema de carne e de sangue espiritual, livro seminal, secreto e luminoso duma mulher/menina poetisa e maga em terras africanas de outrora e deste tempo quotidiano, que é, para nosso prazer e nossa honra de leitores, Maria Estela Guedes.
                            

Este é um livro com cheiro de África. E é uma África vista com isenção por quem viveu na Guiné-Bissau de 1956 a 1966, ao tempo do colonialismo que coincidiu também com o de sua formação pessoal. E ninguém esquece os anos de sua formação. Muito menos um poeta. Por isso, Maria Estela Guedes, nascida em Britiande/Lamego em 1947, reuniu os seus poemas evocativos de uma Guiné-Bissau que já não existe neste livro, Chão de Papel, que, como observa Nicolau Saião na apresentação, traz uma mensagem lucidamente antilírica – “se entendermos como lirismo essa escrita impressionista (um pouco defasada da realidade mas legítima e soberana – que por aí vai dando cobertura a um romantismo de pacotilha, ultra-sentimental e, por isso mesmo, refalso e, no fundo, claramente pedante”.....Adelto Gonçalves*Ler em...



2 comentários:

  1. Muito obrigada pela leitura do Diário. Claro, que pode publicar, é uma honra ! Aceito o seu convite para ser colaboradora, mas uma vez, obrigada.
    Conheci a escritora Estela Guedes, quando esteve presente na Bienal de 2008, em Fortaleza.
    Um abraço,
    Margleice

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