agosto 24, 2010


 A POESIA DE MARIA ESTELA GUEDES


Fonte de Vaz Teixeira
Guiné-Bissau, um mapa de ilhas.
É o arquipélago das lembranças.

A Fonte de Vaz Teixeira, ainda existirá?
Oculta na floresta, em ruínas,
Mas rica de vitrais no céu.
Debaixo da copa das árvores, como catedral
Savanícola, deixavam coar a luz
Bandos de verdamarelos periquitos.
Partiam a jato, num roçagar
De vestidos de baile.
Mais que na igreja, onde
Volta e meia perdias os sentidos
Quando - ao domingo de manhã -
Ias em jejum à missa,
Na fonte sentias a revelação
Do semântico sopro divino.

Não podias meter-te na água
Sem as pernas ficarem presa
De sanguessugas maiores que
Hipopótamos. Hoje são mais pequenas
E até a alma te sorvem.

O tambor


Talking drum – o bombolom.
Um tambor conversa com outro tambor
Atravessando dezenas
De quilómetros de savana.
É um tronco de árvore
Percutido por um homem
Frenético – incansável – jornalista 
Que manda notícias de uma para
Outra tabanca - novas de desastre
Novas de casamento
Novas de compra de vaca
Novas de nascimento
E do choro pelo homem de muitas chuvas
Fiju di terra que morreu esta tarde
Notícias notícias notícias
Como as do jornal No Pintcha
Tan-tan tan-tan-tan tan-tan
A noite como tambor
Toda a noite percutida
Incessantemente - e amanhã
Incessantemente - incessantemente
Na noite seguinte.
Suspende a respiração, ó dia,
Suspende a respiração
O tambor conta que o Mustafá
Desapareceu em Bissorã
E que estão espalhados no capim
Bocadinhos do corpo de um homem
Que corria pela ofegante savana
E explodiu no ar
Ao pôr o pé numa diabólica mina
O Jagudi

Quem ousaria pensar que ao familiar
Abutre, rondando sempre as casas
Na expetativa de uns restos de comida,
As asas largas, o voo poderoso
Aquele hábito de planar nos pontos mais altos
Do céu, o pescoço depenado
O jeito trôpego de andar
Quem ousaria pensar
Que à majestosa e antropófila rapinácea
Darias um dia o nome lineano de
Trigonoceps occipitalis?

O Jagudi – não era esse o nome do jornal
Do liceu, aquele em que se calhar estão
Publicadas as tuas primeiras letras?

Mangos da terra

Saboreaste doces e amargas azedinhas
Fole, cajú, papaia e mangos da terra -
Pequenos, modestos,
Pendentes dos longos pés,
À mão de semear de garotos e macacos.
Recurso dos viandantes, dos animais e dos
Que ca tem patacão.
Viste as crianças, nuas, a batata do umbigo
Montada nas barrigas opadas,
Agacharem-se no chão a comerem terra.
Tu azangavas os regos de ananás
Para chupares limões verde-veneno,
No pomar de espinho.
Cada um buscava instintivamente
As substâncias químicas de que precisava:
Ferro, ácidos, vitaminas…
E outros, no mato, comiam chumbo
Sem necessidade nenhuma.



Mandingas
 

Um ex-libris africano, um estereótipo -
Como o das mulheres a pilarem arroz
Em contraluz, de filhos às costas – as mansas
Vacas brancas montadas por negrinhos
Que não sabem escrever a nossa língua
Mas vão à escola corânica
Sentados atilados na varanda da palhota
Do homem grande.
Preparam-se para um futuro passado.

Um dia a tabanca pegou fogo
As ávidas labaredas os telhados de capim
Rápidas devorando.
Meninos do Liceu logo acorreram
Corajosos, destemidos
Salvando galinhas-do-mato, moringas,
Balaios, esteiras, um papagaio cinzento
- E pouco mais seria do que isto
Uma completa mobília -
Levando dali pela mão
Uma ou outra criança perdida.
Inchados de alegria pelo dever cumprido
Receberam depois louvor e preito de gratidão
Das mãos do governador.
Todos nos preparávamos para o futuro passado.

Máscaras


Metiam medo, as cabeças de animais
Com cornos magnificentes
De pontas como punhais.
Quem se esconderia por detrás do pavor?
Então, para fugir ao perigo
O governo proibiu as máscaras de Carnaval.

Nunca mais se veriam as cabeças de antílope
Nunca mais
Nunca mais se veriam as cabeças de onça
Nunca mais.
Nunca mais se veria a cabeça do corvo, Edgar,
Nunca, nunca mais.

O perigo seria cada vez maior, sempre
Sempre o perigo espreitando por detrás dos cajueiros
E no meio dos canaviais.

Nunca mais se veriam as máscaras, apesar
De inofensivas, feitas com folhas de jornais
Mas nunca mais se veriam as máscaras
Never more, Edgar, nunca mais.

A Kabi Nafantchamna, no dia da sua morte

Os tiranetes duram pouco
E os grandes tiranos, por muitos quarenta anos
Que governem, também pouco duram
A força é empregue pelo mais fraco
O que precisa de armas à falta de persuasão
E de matar no receio de morrer.
Dia 2 de Março de 2009, manhã cedo:
Ouve-se nos noticiários falar de levante
Em Bissau, e do assassínio do Chefe
Do Estado-Maior
Das Forças Armadas, General Tagmé Na Waié.

Espoliado dos bens o Presidente da República,
Nino Vieira.
Levaram-te o televisor de casa, Nino, os fatos,
As belas gravatas, a água de colónia, os pratos
E os talheres, as armas e as mobílias.
Ainda ninguém disse com absoluta certeza que
Também foste assassinado, Nino,
Mas se os soldados te assaltaram a casa
E a meio da manhã ainda não tinham acabado
De a esvaziar
Que significa o “Desaparecido em parte incerta”
Das notícias que te cercam?
Conheces o ditado “Quem com ferro mata…”?
Conheces, Nino? Ainda ninguém disse nada
Mas podes crer que
Mesmo sem despacho
Alguém te despachou para o tribunal do Irã.

Bárbaros, violentos, egotistas.
Iguais em tudo na guerra
E iguais em tudo na paz
Aos mais bárbaros, violentos e egotistas
Americanos, asiáticos e europeus.


O cais do Pidjiguiti


Não quero partir sem voltar ao Ku Pelon
A ouvir as serenatas do meu amigo.
Em noites de lua enorme
A viola silenciava as bombas
E as manchas de sangue no cais do Pidjjguiti.
- O que foi? O que foi? – recorda.
Os gritos, o pavor, a bicicleta
A tremer como varas verdes
Pela carreira de tiro de Santa Luzia
Ao contrário das mulheres de mamas nuas
Manga delas, saídas das palhotas
Para a rua, que levavam as mãos à cabeça
Num grito só, um grito mudo dentro da memória –
O que foi? O que foi que aconteceu?

- Não estamos na nossa terra – ousaste
Dizer depois
À mesa. O estalo na cara pronto.
Não pudeste ficar calada?

Dezenas de trabalhadores abatidos
No cais pela Polícia, um massacre,
O sangue a escorrer espantado para o Geba.
E as covas feitas não se sabe onde
Reza já o que mais soa a legenda
Para que se não soubesse.
A consciência do crime. Como se fosse
Possível ignorar.
Como se fosse possível esquecer.
Assim depois o crime repetido insaciavelmente
Por negros e brancos
E mulatos igualmente
Até ao dia de ontem
Em que também foi assassinado
Nino Vieira, o Presidente.
Sem grandes diferenças, na morte
Todos iguais
Sem precisão de invocar raças
Nem a paleta das cores.

O tempo do Pidjiguiti vai tão longe - 3 de
Agosto de 1959, tinhas 12 anos –
Com esse dia começou a guerra
E nunca mais seríeis felizes como antes.

Não era nosso o Chão de Papel
Mas podia ter sido
Se em vez de chumbo, ódio, vinganças e cana
Tivéssemos semeado letras na terra.

                                                                                       Maria Estela Guedes
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Um comentário:

  1. Ler Maria Estela Guedes é ler África, é ler "o arquipélago das lembranças" (Guiné-Bissau), é ler um passado de sanguessugas que... "Hoje são mais pequenas/ E até a alma te sorvem (...)", é sentir os cheiros de África, o drama de um "futuro passado", da fome e dos corpos despedaçados no capim, dos perigos bem maiores que "as máscaras de Carnaval", das "manchas de sangue, no cais do Pidjjguiti (...)" e nos cais de hoje.
    E a última estrofe é bem elucidativa.:"(...) Não era nosso o Chão de Papel/Mas podia ter sido/se em vez de chumbo, ódio, vingança e cana/tivéssemos semeado letras na terra."
    Parabéns, Maria Estela, pelas letras que semeia na terra. África precisa delas. E só assim, os guineenses, por exemplo, poderão desenvolver as suas capacidades e ajudar-nos a redescobrir valores que nós, europeus, temos esquecido.

    Maria João Oliveira

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