maio 05, 2011

Destaque da Primeira Edicao



A  Poesia de Serginho Poeta



A Hora da Estrela 
[Obra Lívio de Morais-Zambézia, Moçambique]

De repente algo perturba, incomoda
E por mais que se tente não se pode
Afastar o desejo repentino que explode
Por dentro do corpo e da cabeça toda

E parece então que algo desbota
Como nascesse enfim outro universo
Dentro da alma e após no verso
E o verso depois é quem denota

Como um parto, dou à luz a personagem
Pálida, confusa e assustada
Como alguém assim recém chegada
Que não conhece no espelho a própria imagem

Solto ao mundo um ser ainda em pelo
Emergido ele de mim mesmo
Como espasmo que se sente a esmo
Como um grito a escapar do pesadelo

Tão pobre em si é minha idéia
Nascida antes mesmo de nascer
Que como um cão que é cão sem o saber
Nada saberá de si minha Macabéa

Só terá ciência do que eu lhe impuser
Ademais saberá que é nortista
Que deseja ao longe ser artista
Além, apenas que é mulher

Mas por mais que falte nela
Uma centelha qualquer de ânimo
Um espírito sagaz ou magnânimo
Há no seu passado uma janela

E pela vidraça estilhaçada eu observo
A história dessa jovem aqui sentada
Na platibanda do jardim da invernada
Ao meu lado esperando enquanto escrevo

Devo dizer dela: Órfã cedo
Pagou pelo infortúnio de ser pobre
Na cidade onde cedo se descobre
Que a solidão é um sanguinário desenredo

Esquece-te agora, oh Macabéa
Do navio que some no horizonte
Do marinheiro alinhado aí defronte
É a hora da estrela e da estréia

Esta insossa criação insatisfez a obra
Pobre e parco ser que só revela
Uma criatividade morna
De um criador tão morno quanto ela
E se escrevo,
Escrevo apenas porque a mim não basta
Esta minha vida fútil
Que se desgasta inutilmente
Mas antes de escrever eu vivo
E fosse, escrever somente
Juro então que eu não a mataria

Mas apressa-se agora, minha cria
Que enfim tornar-se-á uma estrela
E de todos os lugares virão vê-la
Manchada de sangue ao meio fio
E poderá quem sabe descobrir-se
N’outro plano,
Longe da cidade em desvario

Dou-lhe à sorte de um sonho avesso
De uma urbana e comum fatalidade
E volto aos afazeres do meu cotidiano

De ti, ó musa ignóbil, me despeço
E quem sabe um dia,
Em uma tarde de algum tempo que eu tiver
À prateleira de alguma biblioteca
Poderei por ledo engano
Encontrar sua vida a sangue escrita
Adulterada pelas mãos de outro poeta
****



A Espera do Eclipse



Ouvir Schuber no rádio
Enquanto dormes e consumo tua beleza
Por que não?
Haverão de dizer que sou pedante
Mas a lua está no céu, esplendorosa
E por isso sou poeta
Para entender (sem entender)
O que é belo

Esperei e não vi o tal eclipse
Mas a tua silhueta na brancura do lençol
É mais bonita que a sombra da Terra
Passando sobre a Lua
E no instante em que te escrevo este poema
Ela clareia nosso quarto
(Seu corpo é o planeta que habito)

Por isso estou sem sono
Para contar-te a beleza que não vês
E por isto sou poeta
Para ilustrar os teus sonhos
Com os poemas que escrevo
**** 

Assassino dos Meus Sonhos  


[Samartaime, óleo s/tela]

Olho o impávido móvel no canto da sala
Que devora parte de mim enquanto vivo
Vigilante posto em minha casa que sempre me avisa
Quando faltam dez minutos para todas as coisas

Sua antiga carcaça de madeira não enruga
Como enruga a pele do meu rosto,
Como enruga o tecido do meu corpo
Não enruga como não enruga a carne de minha avó na fotografia
Maldito aparelho que tanto preciso para me lembrar da liberdade que não tenho

Dentro desta caixa de madeira existe um olho
E espíritos calados nos seus giros
De pessoas padecidas desse mal que me assola
Relógio, impávido relógio, para quem o tempo não passa
Enquanto envelheço, remoça e se alimenta da minha pressa

Já vou que são seis horas e o patrão me espera
E o relógio me olha severo através do dia que ainda é tão novo
E me aponta a porta por onde lá fora o povo todo caminha

Mas me desvio entre a gente sem vida
E potentes automóveis, e pontes
E ruas que não me levam a lugar algum

São sete horas exatas no relógio de ponto
E sete também na Praça Central
Por todos os lados a mesma indicação:
Sete horas no bolso do velho avarento
No pulso do moço os números digitais apontam
No rosto de todos está escrita a mesma coisa:
- São sete horas e nada mais se pode a não ser calar-se.

Há um terrível silêncio nessa manhã
Falam por nós as engrenagens
As portas de aço se levantam e as máquinas acordam
“dormiram mais que os operários”
As escolas públicas soam as suas sirenes
E acostumam os meninos aos sons das fábricas

Ninguém nota minha ausência, pois tudo tem pressa
O patrão, pelo vidro de sua sala que dá para o pátio,
Conta uma, duas vezes, mas somos muitos e se confunde
Seus olhos lhe enganam, mas não ao seu instinto
Seu ouvido apurado sente que uma nota ausente desafina a orquestra

Corro desesperado entre os transeuntes
Preciso achar a saída, ainda não perceberam os vigilantes
Que alguém ali está fora do contexto
Artistas riem das pressas e choram das indiferenças
Não somos livres quando a fome fala
- Pegam-nos pela barriga estes canalhas!


Estradas que dão para longe dos relógios
São estas que os meus pés procuram
Há muito a perder caso eu fuja?
Mas não responda a esta pergunta
Que eu não tenho tempo para ouvi-lo
Piso um passo fora e já me chama a dúvida
Outro mais e a certeza me detém agora
Mais não posso, o horizonte escurece
E um despertador acorda minha cabeça

Vou levantar que as seis chegam logo
Nos próximos minutos estão a cara mal lavada
O amor deixado pra depois e o pão comido às pressas

Há o ônibus e o cansaço dos pingentes
Uma greve a se fazer, há recessão
A política e o som ensandecido das caldeiras e das prensas
Há o olho do patrão de hora em hora
Há o carnê no fim do mês e a hora extra
Mas não há moratória ao operário

Em qualquer canto onde os relógios não existam
Estão os sonhos a serem descobertos
E à casa torno como o filho bom de minha mãe
Onde espera-me o senhor de todos os segundos

É hora do jantar e está servido
É hora de dormir e o amor diz que já é tarde
O relógio lá em baixo é um fantasma
Seu toque soa como passos pela escada
E assassina os meus sonhos ainda em flor

Eu, arma em punho e um desejo
Escorrego pela escada sem ruído
Ou mato este estorvo ou a mim próprio
Não quero morrer sendo seu servo

Noto ainda um último badalo e a bala estronda no seu vidro
Jazem dois ponteiros adiante,
Assassino e volto ao sono sem remorso
Amanhã não vou para o trabalho

 

 ****


Soldados de Chumbo

 


 

 

Quando apagam a luz                                                                                  

Da última cela do meu pavilhão                                                                

Um clarão vem iluminar a minha janela                                             

É a lua

Não sei o que seria de mim se não fosse ela

O sentinela caminha de um lado para outro

Acende um cigarro...

Um carro passa por trás da muralha

Não posso vê-lo, apenas ouvi-lo

Não posso tocá-lo, mas posso senti-lo


É engraçado

Não fosse pelo andar desengonçado

Pela deselegância

Diria que o homem fardado

Se parece com alguns soldados de chumbo

Que ganhei na minha infância

Minha mãe trabalhava

Por quanto tempo durasse o dia

E acaso, não fosse o bastante

Seu esforço tinha a noite como companhia

Às vezes, me levava para o emprego

E eu ficava confinado na área de serviço

Talvez porque a patroa não gostasse de negros

Circulando pelos cômodos do seu luxuoso cortiço

 

Quando acordava de bom humor

Danava-se a falar do moleque sem cor

Que queria que fosse engenheiro

Sei que minha mãe sonhava pra mim

Um futuro semelhante

Mas quando olhava pro neguinho

Com ar de maloqueiro

Arriava o semblante e sofria

Como quem descobre uma infinita distância

Entre desejo e realidade

 

Certo dia

A madame me deu de esmola

A Guarda Real Britânica

Em formato de miniaturas

Criaturas sem pernas ou braços

Que o pequeno engenheiro enjoou

Eu tinha, lá em casa

Uma tribo com dezenas de caixas de fósforos

Daquelas amarelas

Com a figura de um índio estampado nos rótulos

Vivazes, meus amigos me eram sagrados

E estavam sempre prontos

Para conterem a invasão

Dos soldadinhos amputados

Outros mais me foram dados

Mas minha tribo sempre vencia

Por mais que o pelotão crescesse

Era como se pelo menos ali, naquele dia

O neguinho também vencesse

 

Eu era pequeno, gigante na minha imaginação

Não creio que o fabricante mais astuto

Pudesse imaginar que seu produto

Fosse além de acender cigarro ou fogão


À noite

Quando minha mãe voltava pra casa

Silenciávamo-nos a todo custo

Para velarmos seu sono tão justo

Depois, cada peça do meu invento

Ia para debaixo do colchão

Ao lado do bloco de cimento

Que sustentava minha cama

A dois palmos do chão

Quando Deus achou que era a hora

Resolveu levar minha santa senhora

Antes que ela pudesse perceber

No que a vida me transformou

Se foi ganância, fraqueza ou necessidade

Não sei

Ninguém nunca me explicou

 

Amanhã, é dia de visita

Meu filho, a criança mais bonita

Virá me conhecer

Vou rezar até o amanhecer

Para que a vida também não o torne um bandido

Para que seja talvez como minha mãe sonhou 

Um profissional bem-sucedido

E se acaso eu perceber

Que ainda existe uma infinita distância

Entre desejo e realidade

Maior terá que ser meu pensamento

Mais forte há de ser minha vontade!

 

Serginho Poeta



Serginho Poeta nasceu em São Paulo, em 27 de junho de 1970. Rejeitado pelo pai, foi registrado Sergio Luis Lima de Oliveira, recebendo apenas o sobrenome da mãe, Cely. Nos primeiros meses de vida morou na favela da Cachoeirinha, zona norte da cidade, passando depois a viver com a avó.

            Mais tarde, sua mãe veio a conhecer José Mesiano, - que lhe acrescentou depois o sobrenome - proprietário de um salão de cabeleireiros e militante do partido comunista. O espírito revolucionário do padrasto forjou a personalidade de Serginho e foi sob sua influência que o poeta teve seu primeiro contato com a leitura, por meio da obra de Monteiro Lobato.
            Depois de morar em diversos pontos da cidade, a família adquiriu uma casa no Parque Santo Antônio, próximo ao Capão Redondo. Ao mesmo tempo em que a vida na periferia trouxe à vista do poeta um cenário de exclusão, injustiça e preconceito, aproximou-o de novos valores e referências culturais, entre elas, o samba dos botecos e o rap dos jovens de sua idade.
            Descobriu a poesia nas canções do primeiro disco de Zeca Pagodinho, comprado em sociedade com o amigo Adoaldo. Mais tarde, ao ouvir a música dos Racionais MC’s e ao ler os poemas de Ferreira Gullar e Castro Alves, Serginho identificou-se com a expressão artística inspirada na realidade social. Seus versos narram episódios pessoais e corriqueiross, vistos sob um olhar atento a questionamentos sócio-culturais e, sobretudo à capacidade do ser-humano de superar os obstáculos da vida cotidiana.
            Em 1998, casou-se e teve um filho, Hector. Em 2001, aos trinta e um anos, conheceu a “Comunidade Samba da Vela”, projeto cultural realizado no bairro de Santo Amaro. Em uma noite memorável, por sugestão de um dos organizadores, Magno de Souza, o então motoboy declamou “Negro Poeta de Esquina” e, a partir deste dia, foi batizado Serginho Poeta e passou a integrar as apresentações do grupo.
            Serginho atualmente cursa ciências sociais na Escola de Sociologia      e   Política de São Paulo (ESP) e continua morando no mesmo Parque Santo Antônio, de tantas alegrias e sofrimentos, próximo ao filho, aos pais e amigos.

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