A POESIA DE MARIA ESTELA GUEDES
Fonte de Vaz TeixeiraGuiné-Bissau, um mapa de ilhas.É o arquipélago das lembranças.
A Fonte de Vaz Teixeira, ainda existirá?Oculta na floresta, em ruínas,Mas rica de vitrais no céu.Debaixo da copa das árvores, como catedralSavanícola, deixavam coar a luzBandos de verdamarelos periquitos.Partiam a jato, num roçagarDe vestidos de baile.Mais que na igreja, ondeVolta e meia perdias os sentidosQuando - ao domingo de manhã -Ias em jejum à missa,Na fonte sentias a revelaçãoDo semântico sopro divino.
Não podias meter-te na águaSem as pernas ficarem presaDe sanguessugas maiores queHipopótamos. Hoje são mais pequenasE até a alma te sorvem.
O tambor
Talking drum – o bombolom.Um tambor conversa com outro tamborAtravessando dezenasDe quilómetros de savana.É um tronco de árvorePercutido por um homemFrenético – incansável – jornalistaQue manda notícias de uma paraOutra tabanca - novas de desastreNovas de casamentoNovas de compra de vacaNovas de nascimentoE do choro pelo homem de muitas chuvasFiju di terra que morreu esta tardeNotícias notícias notíciasComo as do jornal No PintchaTan-tan tan-tan-tan tan-tanA noite como tamborToda a noite percutidaIncessantemente - e amanhãIncessantemente - incessantementeNa noite seguinte.Suspende a respiração, ó dia,Suspende a respiraçãoO tambor conta que o MustafáDesapareceu em BissorãE que estão espalhados no capimBocadinhos do corpo de um homemQue corria pela ofegante savanaE explodiu no arAo pôr o pé numa diabólica minaO Jagudi
Quem ousaria pensar que ao familiarAbutre, rondando sempre as casasNa expetativa de uns restos de comida,As asas largas, o voo poderosoAquele hábito de planar nos pontos mais altosDo céu, o pescoço depenadoO jeito trôpego de andarQuem ousaria pensarQue à majestosa e antropófila rapináceaDarias um dia o nome lineano deTrigonoceps occipitalis?
O Jagudi – não era esse o nome do jornalDo liceu, aquele em que se calhar estãoPublicadas as tuas primeiras letras?
Mangos da terra
Saboreaste doces e amargas azedinhasFole, cajú, papaia e mangos da terra -Pequenos, modestos,Pendentes dos longos pés,À mão de semear de garotos e macacos.Recurso dos viandantes, dos animais e dosQue ca tem patacão.Viste as crianças, nuas, a batata do umbigoMontada nas barrigas opadas,Agacharem-se no chão a comerem terra.Tu azangavas os regos de ananásPara chupares limões verde-veneno,No pomar de espinho.Cada um buscava instintivamenteAs substâncias químicas de que precisava:Ferro, ácidos, vitaminas…E outros, no mato, comiam chumboSem necessidade nenhuma.
Mandingas
Um ex-libris africano, um estereótipo -Como o das mulheres a pilarem arrozEm contraluz, de filhos às costas – as mansasVacas brancas montadas por negrinhosQue não sabem escrever a nossa línguaMas vão à escola corânicaSentados atilados na varanda da palhotaDo homem grande.Preparam-se para um futuro passado.
Um dia a tabanca pegou fogoAs ávidas labaredas os telhados de capimRápidas devorando.Meninos do Liceu logo acorreramCorajosos, destemidosSalvando galinhas-do-mato, moringas,Balaios, esteiras, um papagaio cinzento- E pouco mais seria do que istoUma completa mobília -Levando dali pela mãoUma ou outra criança perdida.Inchados de alegria pelo dever cumpridoReceberam depois louvor e preito de gratidãoDas mãos do governador.Todos nos preparávamos para o futuro passado.
Máscaras
Metiam medo, as cabeças de animaisCom cornos magnificentesDe pontas como punhais.Quem se esconderia por detrás do pavor?Então, para fugir ao perigoO governo proibiu as máscaras de Carnaval.
Nunca mais se veriam as cabeças de antílopeNunca maisNunca mais se veriam as cabeças de onçaNunca mais.Nunca mais se veria a cabeça do corvo, Edgar,Nunca, nunca mais.
O perigo seria cada vez maior, sempreSempre o perigo espreitando por detrás dos cajueirosE no meio dos canaviais.
Nunca mais se veriam as máscaras, apesarDe inofensivas, feitas com folhas de jornaisMas nunca mais se veriam as máscarasNever more, Edgar, nunca mais.
A Kabi Nafantchamna, no dia da sua morte
Os tiranetes duram poucoE os grandes tiranos, por muitos quarenta anosQue governem, também pouco duramA força é empregue pelo mais fracoO que precisa de armas à falta de persuasãoE de matar no receio de morrer.Dia 2 de Março de 2009, manhã cedo:Ouve-se nos noticiários falar de levanteEm Bissau, e do assassínio do ChefeDo Estado-MaiorDas Forças Armadas, General Tagmé Na Waié.
Espoliado dos bens o Presidente da República,Nino Vieira.Levaram-te o televisor de casa, Nino, os fatos,As belas gravatas, a água de colónia, os pratosE os talheres, as armas e as mobílias.Ainda ninguém disse com absoluta certeza queTambém foste assassinado, Nino,Mas se os soldados te assaltaram a casaE a meio da manhã ainda não tinham acabadoDe a esvaziarQue significa o “Desaparecido em parte incerta”Das notícias que te cercam?Conheces o ditado “Quem com ferro mata…”?Conheces, Nino? Ainda ninguém disse nadaMas podes crer queMesmo sem despachoAlguém te despachou para o tribunal do Irã.
Bárbaros, violentos, egotistas.Iguais em tudo na guerraE iguais em tudo na pazAos mais bárbaros, violentos e egotistasAmericanos, asiáticos e europeus.
O cais do Pidjiguiti
Não quero partir sem voltar ao Ku PelonA ouvir as serenatas do meu amigo.Em noites de lua enormeA viola silenciava as bombasE as manchas de sangue no cais do Pidjjguiti.- O que foi? O que foi? – recorda.Os gritos, o pavor, a bicicletaA tremer como varas verdesPela carreira de tiro de Santa LuziaAo contrário das mulheres de mamas nuasManga delas, saídas das palhotasPara a rua, que levavam as mãos à cabeçaNum grito só, um grito mudo dentro da memória –O que foi? O que foi que aconteceu?
- Não estamos na nossa terra – ousasteDizer depoisÀ mesa. O estalo na cara pronto.Não pudeste ficar calada?
Dezenas de trabalhadores abatidosNo cais pela Polícia, um massacre,O sangue a escorrer espantado para o Geba.E as covas feitas não se sabe ondeReza já o que mais soa a legendaPara que se não soubesse.A consciência do crime. Como se fossePossível ignorar.Como se fosse possível esquecer.Assim depois o crime repetido insaciavelmentePor negros e brancosE mulatos igualmenteAté ao dia de ontemEm que também foi assassinadoNino Vieira, o Presidente.Sem grandes diferenças, na morteTodos iguaisSem precisão de invocar raçasNem a paleta das cores.
O tempo do Pidjiguiti vai tão longe - 3 deAgosto de 1959, tinhas 12 anos –Com esse dia começou a guerraE nunca mais seríeis felizes como antes.
Não era nosso o Chão de PapelMas podia ter sidoSe em vez de chumbo, ódio, vinganças e canaTivéssemos semeado letras na terra.
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Ler Maria Estela Guedes é ler África, é ler "o arquipélago das lembranças" (Guiné-Bissau), é ler um passado de sanguessugas que... "Hoje são mais pequenas/ E até a alma te sorvem (...)", é sentir os cheiros de África, o drama de um "futuro passado", da fome e dos corpos despedaçados no capim, dos perigos bem maiores que "as máscaras de Carnaval", das "manchas de sangue, no cais do Pidjjguiti (...)" e nos cais de hoje.
ResponderExcluirE a última estrofe é bem elucidativa.:"(...) Não era nosso o Chão de Papel/Mas podia ter sido/se em vez de chumbo, ódio, vingança e cana/tivéssemos semeado letras na terra."
Parabéns, Maria Estela, pelas letras que semeia na terra. África precisa delas. E só assim, os guineenses, por exemplo, poderão desenvolver as suas capacidades e ajudar-nos a redescobrir valores que nós, europeus, temos esquecido.
Maria João Oliveira