A Poesia de Serginho Poeta
A Hora da Estrela [Obra Lívio de Morais-Zambézia, Moçambique]
De repente algo perturba, incomoda
E por mais que se tente não se pode
Afastar o desejo repentino que explode
Por dentro do corpo e da cabeça toda
E parece então que algo desbota
Como nascesse enfim outro universo
Dentro da alma e após no verso
E o verso depois é quem denota
Como um parto, dou à luz a personagem
Pálida, confusa e assustada
Como alguém assim recém chegada
Que não conhece no espelho a própria imagem
Solto ao mundo um ser ainda em pelo
Emergido ele de mim mesmo
Como espasmo que se sente a esmo
Como um grito a escapar do pesadelo
Tão pobre em si é minha idéia
Nascida antes mesmo de nascer
Que como um cão que é cão sem o saber
Nada saberá de si minha Macabéa
Só terá ciência do que eu lhe impuser
Ademais saberá que é nortista
Que deseja ao longe ser artista
Além, apenas que é mulher
Mas por mais que falte nela
Uma centelha qualquer de ânimo
Um espírito sagaz ou magnânimo
Há no seu passado uma janela
E pela vidraça estilhaçada eu observo
A história dessa jovem aqui sentada
Na platibanda do jardim da invernada
Ao meu lado esperando enquanto escrevo
Devo dizer dela: Órfã cedo
Pagou pelo infortúnio de ser pobre
Na cidade onde cedo se descobre
Que a solidão é um sanguinário desenredo
Esquece-te agora, oh Macabéa
Do navio que some no horizonte
Do marinheiro alinhado aí defronte
É a hora da estrela e da estréia
Esta insossa criação insatisfez a obra
Pobre e parco ser que só revela
Uma criatividade morna
De um criador tão morno quanto ela
E se escrevo,
Escrevo apenas porque a mim não basta
Esta minha vida fútil
Que se desgasta inutilmente
Mas antes de escrever eu vivo
E fosse, escrever somente
Juro então que eu não a mataria
Mas apressa-se agora, minha cria
Que enfim tornar-se-á uma estrela
E de todos os lugares virão vê-la
Manchada de sangue ao meio fio
E poderá quem sabe descobrir-se
N’outro plano,
Longe da cidade em desvario
Dou-lhe à sorte de um sonho avesso
De uma urbana e comum fatalidade
E volto aos afazeres do meu cotidiano
De ti, ó musa ignóbil, me despeço
E quem sabe um dia,
Em uma tarde de algum tempo que eu tiver
À prateleira de alguma biblioteca
Poderei por ledo engano
Encontrar sua vida a sangue escrita
Adulterada pelas mãos de outro poeta
****
A Espera do Eclipse
Ouvir Schuber no rádio
Enquanto dormes e consumo tua beleza
Por que não?
Haverão de dizer que sou pedante
Mas a lua está no céu, esplendorosa
E por isso sou poeta
Para entender (sem entender)
O que é belo
Esperei e não vi o tal eclipse
Mas a tua silhueta na brancura do lençol
É mais bonita que a sombra da Terra
Passando sobre a Lua
E no instante em que te escrevo este poema
Ela clareia nosso quarto
(Seu corpo é o planeta que habito)
Por isso estou sem sono
Para contar-te a beleza que não vês
E por isto sou poeta
Para ilustrar os teus sonhos
Com os poemas que escrevo ****
Assassino dos Meus Sonhos
[Samartaime, óleo s/tela]
Olho o impávido móvel no canto da sala
Que devora parte de mim enquanto vivo
Vigilante posto em minha casa que sempre me avisa
Quando faltam dez minutos para todas as coisas
Sua antiga carcaça de madeira não enruga
Como enruga a pele do meu rosto,
Como enruga o tecido do meu corpo
Não enruga como não enruga a carne de minha avó na fotografia
Maldito aparelho que tanto preciso para me lembrar da liberdade que não tenho
Dentro desta caixa de madeira existe um olho
E espíritos calados nos seus giros
De pessoas padecidas desse mal que me assola
Relógio, impávido relógio, para quem o tempo não passa
Enquanto envelheço, remoça e se alimenta da minha pressa
Já vou que são seis horas e o patrão me espera
E o relógio me olha severo através do dia que ainda é tão novo
E me aponta a porta por onde lá fora o povo todo caminha
Mas me desvio entre a gente sem vida
E potentes automóveis, e pontes
E ruas que não me levam a lugar algum
São sete horas exatas no relógio de ponto
E sete também na Praça Central
Por todos os lados a mesma indicação:
Sete horas no bolso do velho avarento
No pulso do moço os números digitais apontam
No rosto de todos está escrita a mesma coisa:
- São sete horas e nada mais se pode a não ser calar-se.
Há um terrível silêncio nessa manhã
Falam por nós as engrenagens
As portas de aço se levantam e as máquinas acordam
“dormiram mais que os operários”
As escolas públicas soam as suas sirenes
E acostumam os meninos aos sons das fábricas
Ninguém nota minha ausência, pois tudo tem pressa
O patrão, pelo vidro de sua sala que dá para o pátio,
Conta uma, duas vezes, mas somos muitos e se confunde
Seus olhos lhe enganam, mas não ao seu instinto
Seu ouvido apurado sente que uma nota ausente desafina a orquestra
Corro desesperado entre os transeuntes
Preciso achar a saída, ainda não perceberam os vigilantes
Que alguém ali está fora do contexto
Artistas riem das pressas e choram das indiferenças
Não somos livres quando a fome fala
- Pegam-nos pela barriga estes canalhas!
Estradas que dão para longe dos relógios
São estas que os meus pés procuram
Há muito a perder caso eu fuja?
Mas não responda a esta pergunta
Que eu não tenho tempo para ouvi-lo
Piso um passo fora e já me chama a dúvida
Outro mais e a certeza me detém agora
Mais não posso, o horizonte escurece
E um despertador acorda minha cabeça
Vou levantar que as seis chegam logo
Nos próximos minutos estão a cara mal lavada
O amor deixado pra depois e o pão comido às pressas
Há o ônibus e o cansaço dos pingentes
Uma greve a se fazer, há recessão
A política e o som ensandecido das caldeiras e das prensas
Há o olho do patrão de hora em hora
Há o carnê no fim do mês e a hora extra
Mas não há moratória ao operário
Em qualquer canto onde os relógios não existam
Estão os sonhos a serem descobertos
E à casa torno como o filho bom de minha mãe
Onde espera-me o senhor de todos os segundos
É hora do jantar e está servido
É hora de dormir e o amor diz que já é tarde
O relógio lá em baixo é um fantasma
Seu toque soa como passos pela escada
E assassina os meus sonhos ainda em flor
Eu, arma em punho e um desejo
Escorrego pela escada sem ruído
Ou mato este estorvo ou a mim próprio
Não quero morrer sendo seu servo
Noto ainda um último badalo e a bala estronda no seu vidro
Jazem dois ponteiros adiante,
Assassino e volto ao sono sem remorso
Amanhã não vou para o trabalho
****
Soldados de Chumbo
Quando apagam a luz
Da última cela do meu pavilhão
Um clarão vem iluminar a minha janela
É a lua
Não sei o que seria de mim se não fosse ela
O sentinela caminha de um lado para outro
Acende um cigarro...
Um carro passa por trás da muralha
Não posso vê-lo, apenas ouvi-lo
Não posso tocá-lo, mas posso senti-lo
É engraçado
Não fosse pelo andar desengonçado
Pela deselegância
Diria que o homem fardado
Se parece com alguns soldados de chumbo
Que ganhei na minha infância
Minha mãe trabalhava
Por quanto tempo durasse o dia
E acaso, não fosse o bastante
Seu esforço tinha a noite como companhia
Às vezes, me levava para o emprego
E eu ficava confinado na área de serviço
Talvez porque a patroa não gostasse de negros
Circulando pelos cômodos do seu luxuoso cortiço
Quando acordava de bom humor
Danava-se a falar do moleque sem cor
Que queria que fosse engenheiro
Sei que minha mãe sonhava pra mim
Um futuro semelhante
Mas quando olhava pro neguinho
Com ar de maloqueiro
Arriava o semblante e sofria
Como quem descobre uma infinita distância
Entre desejo e realidade
Certo dia
A madame me deu de esmola
A Guarda Real Britânica
Em formato de miniaturas
Criaturas sem pernas ou braços
Que o pequeno engenheiro enjoou
Eu tinha, lá em casa
Uma tribo com dezenas de caixas de fósforos
Daquelas amarelas
Com a figura de um índio estampado nos rótulos
Vivazes, meus amigos me eram sagrados
E estavam sempre prontos
Para conterem a invasão
Dos soldadinhos amputados
Outros mais me foram dados
Mas minha tribo sempre vencia
Por mais que o pelotão crescesse
Era como se pelo menos ali, naquele dia
O neguinho também vencesse
Eu era pequeno, gigante na minha imaginação
Não creio que o fabricante mais astuto
Pudesse imaginar que seu produto
Fosse além de acender cigarro ou fogão
À noite
Quando minha mãe voltava pra casa
Silenciávamo-nos a todo custo
Para velarmos seu sono tão justo
Depois, cada peça do meu invento
Ia para debaixo do colchão
Ao lado do bloco de cimento
Que sustentava minha cama
A dois palmos do chão
Quando Deus achou que era a hora
Resolveu levar minha santa senhora
Antes que ela pudesse perceber
No que a vida me transformou
Se foi ganância, fraqueza ou necessidade
Não sei
Ninguém nunca me explicou
Amanhã, é dia de visita
Meu filho, a criança mais bonita
Virá me conhecer
Vou rezar até o amanhecer
Para que a vida também não o torne um bandido
Para que seja talvez como minha mãe sonhou
Um profissional bem-sucedido
E se acaso eu perceber
Que ainda existe uma infinita distância
Entre desejo e realidade
Maior terá que ser meu pensamento
Mais forte há de ser minha vontade!
Serginho Poeta
Serginho Poeta nasceu em São Paulo, em 27 de junho de 1970. Rejeitado pelo pai, foi registrado Sergio Luis Lima de Oliveira, recebendo apenas o sobrenome da mãe, Cely. Nos primeiros meses de vida morou na favela da Cachoeirinha, zona norte da cidade, passando depois a viver com a avó.
Mais tarde, sua mãe veio a conhecer José Mesiano, - que lhe acrescentou depois o sobrenome - proprietário de um salão de cabeleireiros e militante do partido comunista. O espírito revolucionário do padrasto forjou a personalidade de Serginho e foi sob sua influência que o poeta teve seu primeiro contato com a leitura, por meio da obra de Monteiro Lobato.
Depois de morar em diversos pontos da cidade, a família adquiriu uma casa no Parque Santo Antônio, próximo ao Capão Redondo. Ao mesmo tempo em que a vida na periferia trouxe à vista do poeta um cenário de exclusão, injustiça e preconceito, aproximou-o de novos valores e referências culturais, entre elas, o samba dos botecos e o rap dos jovens de sua idade.
Descobriu a poesia nas canções do primeiro disco de Zeca Pagodinho, comprado em sociedade com o amigo Adoaldo. Mais tarde, ao ouvir a música dos Racionais MC’s e ao ler os poemas de Ferreira Gullar e Castro Alves, Serginho identificou-se com a expressão artística inspirada na realidade social. Seus versos narram episódios pessoais e corriqueiross, vistos sob um olhar atento a questionamentos sócio-culturais e, sobretudo à capacidade do ser-humano de superar os obstáculos da vida cotidiana.
Em 1998, casou-se e teve um filho, Hector. Em 2001, aos trinta e um anos, conheceu a “Comunidade Samba da Vela”, projeto cultural realizado no bairro de Santo Amaro. Em uma noite memorável, por sugestão de um dos organizadores, Magno de Souza, o então motoboy declamou “Negro Poeta de Esquina” e, a partir deste dia, foi batizado Serginho Poeta e passou a integrar as apresentações do grupo.
Serginho atualmente cursa ciências sociais na Escola de Sociologia e Política de São Paulo (ESP) e continua morando no mesmo Parque Santo Antônio, de tantas alegrias e sofrimentos, próximo ao filho, aos pais e amigos.